Só morro com hora marcada!*

16/04/2023

Denise Dantas

167

Resolvi fincar o pé! Com honrosas exceções, como diz-se ser próprio de toda regra, vou escolher meus médicos, daqui para frente, por critérios que não estarão restritos à sua competência. Este, um critério realmente fundamental, é claro. Mas, não será o único. E espero que falar sobre isto não feche as portas do reino dos jalecos brancos para mim. Antes, abra as da sua compreensão para a causa aqui defendida…

Vocês já aprenderam a técnica de contar carneirinhos? Não? Pouco brasileira, não é? Então, vamos lá, para uma forma bem brasileira – precisamente, bem nordestina – de ver o tempo passar sem senti-lo como uma carga de chumbo a derreter nossa resistência: puxe conversa com seu vizinho ao lado, aquele que está como você, sentado numa sala de espera de um consultório médico, a esperar que chegue a vez de ser atendido, e viva o espantoso fenômeno de intimidade com um estranho, a partilharem os detalhes das doenças ou mal-estares que os fizeram estar ali e muitos assuntos mais.

Sim! É importante ressaltar que vocês ali não têm hora marcada para serem atendidos pelo doutor. Evidentemente, se assim fosse e alguém faltasse à consulta, o médico iria ter que esperar looonnnngos quinze minutos até o próximo paciente. Apesar da freqüência diminuta de tal ocorrência, é perfeitamente possível apreender e concordar quanto ao possível desrespeito contido naquele simples esquecimento do paciente que quase sempre poderia ter ligado, avisando com antecedência sua impossibilidade de ida à consulta. Mas, não é muito de nossos hábitos isto de pesar as conseqüências dos nossos atrasos ou furos em termos de compromissos agendados com outros, não é? E o médico, vítima potencial de tal desconsideração, tem que se proteger, é claro!

E eis que surge a grande invenção! Natalense? Nordestina? Não sei. Mas, é fácil imaginar que não seja usada lá pelo sudeste maravilha (digo isto sem nenhum descaso para com nossa terra, pois sou nordestinamente telúrica, no dizer de uma pessoa amiga). Surge a divina invenção do atendimento médico por ordem de chegada!!!

Quem não conhece o sistema, não é? Todos passamos por ele, vez por outra, principalmente quando a curva dos anos já nos fez derrapar ‘algumas várias’ vezes… Esqueci de excluir uma pequena parcela de pacientes: claro que os próprios médicos jamais percorrerão os corredores kafkanianos de uma sala de espera de consultório médico. Até atribuo a isto a ausência de empatia para a questão dos seus pacientes ali, a tornarem-se impacientes pacientes, e penso que, se eles vivenciassem tais experiências, dar-se-iam conta do que ocorre naquele espaço que congrega pessoas desconhecidas, em sofrimento físico de alguma ordem.

Por ordem de chegada significa ficar impossibilitado de desenvolver suas atividades normais de trabalho por um tempo que excede, em muito, os quinze, vinte minutos de consulta médica (às vezes, toda uma manhã ou uma tarde – ou ainda, um longo período que invade a hora do almoço – são consumidos para uma única ida ao médico), e ter com isto uma série de dificuldades no seu trabalho pelo atraso desmedido de suas atividades. Pode significar você ficar sabendo de toda a doença do seu vizinho de cadeira, de seus problemas familiares e de como seu gato machucou a patinha numa presilha mecânica. Pode significar um acréscimo de desconforto físico ao que já sente por força do motivo que o levou ali. Pode significar, e significa, que seu maior patrimônio, o seu tempo de vida, está sendo dilapidado de uma forma injustamente danosa.

Há um agravo: inversamente, há a invenção da marcação de horário de consulta em hora marcada e em dia marcado. Ou seja, se você quer ir ao médico tem que ligar na véspera, na hora X e ficar dependurado no telefone, que inevitavelmente sofrerá congestionamento de telefonemas, até conseguir – ou, o que é mais provável, desistir – falar com a atendente para marcar a consulta. Mas, há uma opção menos sacrificante: contrate uma secretária particular e ela fará suas ligações sem você ter que se concentrar nisto, desconcentrando-se de suas atividades a cada cinco minutos para tentar uma nova ligação. Simples, não é?

Por todos estes motivos, decidi optar definitivamente pela atendente sem hora marcada e médico com hora marcada. Pelo tempo já vivido em salas de espera de consultórios médicos e, sabendo que, por força do tempo a passar, vou precisar sempre mais e mais, resolvi escolher novos médicos entre aqueles que marcam hora de consulta e cujas atendentes não marcam hora de marcação de consulta. De tal forma isto adquiriu um tom vitalmente dramático para mim que, até para morrer, se precisar de médico ao meu lado, só morro com hora marcada!

* Artigo publicado na Tribuna do Norte, em 07 de agosto de 2001, p.2.

Data da postagem: 16.04.2023

Dia a dia … ou… Arte no gerúndio: Vivendo

Visão Geral do Imparidade em:

https://imparidade.wordpress.com/tbt-posts-e-paginas-do-imparidade

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.