Que venham os ladrões de paisagens!*

27/04/2023

Denise Dantas – Profa.

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Desde menina, gosto de passear de carro. Sei que pode parecer estranho, mas isso é algo muito prazeroso para mim. Tanto que, recentemente, sentindo muita falta dos meus antigos passeios dominicais pela cidade, quando eu ia no banco do carona e não dirigindo como é a minha rotina atualmente, solicitei ao motorista de um familiar que me levasse a visitar as ruas e avenidas para que as visse, o que não consigo fazer quanto estou na direção do carro. Dessa forma, fizemos o percurso de costura das ruas e avenidas de Petrópolis e Tirol: íamos do começo ao fim, por exemplo, da Rua Seridó, voltávamos pela Potengi, e assim sucessivamente, passando a linha depois no sentido perpendicular a isto. Nem é preciso comentar a reação dos que souberam do que fiz…

Da visitação como hábito, que incorporava percursos inteiramente novos muitas vezes, restou o gosto de, pelo menos na orla marítima, dirigir me encantando com a beleza de nossa cidade. Se foi poeticamente exagerada e bonita a expressão dada por uma pessoa ao que eu lhe passei ao falar da nossa região, quando recebi a adjetivação de ser teluricamente nordestina, de certa forma ela faz jus ao que sinto, pois amo nossa terra e continuo a me emocionar ao descobrir a novidade permanente da beleza das nossas paisagens.

E, por isso mesmo, ao constatar que elas estão sumindo da nossa vista, sinto uma dor que não encontro nome para definir, muito embora já tenha encontrado vários tipos de denominações para tal emoção: seca, murcha, insana, calada, mastigada, cortante, vazia, dormente, pisada, moída, picada, guardada, gemida, abafada, cinza, teimosa, sofrida, tangente, nonsense, tristonha,… Não sei ainda, no entanto, falar daquilo que me atinge de um jeito que sei reconhecer como dor, mas não tive ainda como classificar – quem sabe dor impotente?!… – ao perceber a irreversibilidade de certas ações que estão roubando nossas paisagens. Em um dia, vejo que foi um pedacinho da vista do Farol de Mãe Luíza que sumiu, noutro, do Morro do Careca, noutro, do verde das árvores nas avenidas, noutro, da linha de dunas que circunda nossa cidade… Edifícios com gabaritos insustentáveis para uma cidade do porte da nossa, construções em áreas que deveriam continuar sendo não edificáveis e, assim, sinto que, a cada minuto, um pedacinho de paisagem é roubada de mim. E me inquieto e me horrorizo com a indiferença dos de hoje para com seus descendentes a herdarem, inocentemente, uma cidade vítima dos ladrões de paisagem.

E, no entanto, ao encontrar uma outra paisagem, não natural – a praia que tinha areias brancas, cheiro de mar, sons de ondas e natureza íntegra transformou-se numa área fétida com uma visão de sujeira acalentada pela poluição sonora de forrós gritados nos nossos ouvidos – construída por homens também indiferentes ao legado para outras gerações além da presente, fiquei a pensar se não seria até bom que os ladrões de paisagem agissem de forma mais eficiente e roubassem de vez algumas paisagens dos nossos olhos… Que algo fosse feito para que eu não visse mais a Ponta-Negra da minha infância, dos tempos em que existia uma Baixa-da-Coruja e um Carrasco (que me corrijam os veranistas desse tempo, pois minha memória não é lá essas coisas), a Ponta-Negra ausente da minha adolescência, passada fora daqui, mas viva na lembrança como um sonho nunca perdido, a Ponta-Negra da minha maturidade, quando se fez bairro e estendeu sua beleza ao alcance de muitos mais… Que eu não a visse mais e não sentisse a dor – agora sei, impotente – de assistir a uma paisagem querida ser deteriorada e ultrajada pelas mãos dos que se servem dela. É desalento, é entrega, sei disso. Mas, que venham os ladrões de paisagem. Sejam “bem-vindos”!

* Artigo publicado em o O Poti, em 14 de março de 2004, Caderno Cidades, p.5.

Data da postagem: 27.04.2023

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