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Do fazer hora ao fazer a hora*

18/04/2023

Denise Dantas – Profa. UFRN

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A noite chega ao raiar do sol… Fecham-se as portas, fecham-se os olhos, deitam-se os corpos jovens e cansados da brincadeira noturna. E a manhã se transforma na noite tão anunciada na infância…“Está na hora de dormir, já é de noite.”. E a praia e o mar ficam a esperar que os corpos recuperados pelo descanso acordem para suas luzes, seu calor – sua vida – quando já é findo e perdido o bom-dia matinal das férias…

Retomo inquietações antigas.

Um imenso pesar sempre me acompanhava na observação dos novos costumes da vida social em Natal, à medida que os programas de lazer noturno começaram a ter seu início retardado, algo para mim absolutamente sem sentido para uma cidade em que às dezenove horas a maioria dos seus habitantes de classe média já se encontra em casa, após a jornada de trabalho diária. A contragosto, fui me acomodando aos novos padrões, sem ver neles senão uma adesão a elementos alienígenas cultuados aqui como avançados. Tomar conhecimento de que pessoas faziam hora antes do programa combinado reforçava para mim a existência de um nonsense crescentemente aceito como ‘aquilo que tinha de ser’.

Isso já faz muito tempo e senti-me voto vencido, embora com direito a voz para espernear, nos espaços privados, consciente de que não estava tendo ressonância alguma para a minha queixa e desalento. Por quê iniciar um programa à noite mais cedo, terminar mais cedo e dormir mais cedo teria de ser menos valorizado, nunca me foi explicado de forma convincente, mas era mais uma das minhas contramãos na história e ficou por isso mesmo.

No entanto, vi-me mobilizada, novamente, a tocar no assunto ao ouvir, de vários jovens de hoje reunidos no terraço da praia, comentários que me instigam a falar sobre este tema, ainda que sem maiores expectativas com relação a uma reversão no processo, dado que exigiria uma ação coletiva organizada e empenhada em realizá-la a partir, é claro, da defesa comum de um mesmo ponto de vista.

Estou escrevendo em Pirangi do Norte. Praia animada, bonita, colorida por jovens… a partir do meio-dia! Agitada por shows noturnos que se prolongam por madrugadas. Mas, não é peculiaridade desta praia o que estou comentando. Em outras praias e em Natal, ao longo do ano, o fenômeno é o mesmo.

Embora seja da geração que mudou os ponteiros do relógio com relação a esta questão, eu me identifico com estes jovens que hoje estão a lamentar a perda que sentem de suas manhãs de sol. A perplexidade revelada por alguns deles quanto à razão do início tardio dos shows, etc., a queixa por se sentirem lesados em noites de sono bem dormidas, no conforto do escuro da noite e das temperaturas mais baixas, a comparação feita a outras  sociedades em que o lazer noturno tem limites mais sensatos (vale a pena ver Temperança por Comte-Sponville…) são indícios de que não há um acatamento tão unânime sobre a questão quanto me parecia. Há, em alguns jovens (e quem saberia precisar quantos?), a expressão do desejo de programas iniciados mais cedo para melhor usufruto de outros aspectos da vida.

Será que teremos que nos render a valores e costumes que têm sentido em seus lugares de origem, mas que não dizem de nossa realidade local? Penso que não. Sem oposição a outras formas de viver, sou defensora de preservamos nossas características locais por configurarem nossa identidade cultural. Acredito ainda que, se temos funcionado como pólo de atração para muitos que aqui têm vindo se fixar, isto acontece exatamente por esta feição local que, infelizmente, vem sendo, irrefletida e inconseqüentemente, desfigurada (e não apenas nisso, vale destacar…)

Por que não poderíamos ter a vida noturna tendo início duas horas antes do que está em vigor, se existe uma espécie de intervalo em que se faz hora para que chegue a hora de sair?!…

… Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

Lembrar esse hino me leva a perceber que ainda tenho alguma esperança de ver os jovens reavendo suas manhãs de sol, de vê-los fazendo a hora do seu lazer.

* Artigo publicado na Tribuna do Norte, em 21 de janeiro de 2004,  p.2.

Data da postagem: 18.04.2023

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