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Criando minha Pasárgada*

30/04/2023

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Seria na mesma curva azul, de céu cintilante e cama forrada com o branco das areias. Seria com a mesma temperatura, aquela mesma que às vezes parece se tornar mel escaldante, mas que na maior parte do tempo é subjugada pelo vento, sempre tão livre. Seria com o mesmo cordão verde ao dia, negro à noite, linha de base nas noites de lua. Seria com o mesmo mar, banho de paz em todos os momentos… Natal mesma, ímã telúrico, chaves naturais do estar no mundo.

Sua gente, no entanto, seria transladada para o limbo, e aí ficaria a me criar uma trégua do cansaço de suas pequenezas involuntárias, filhas da terra também, crias do lado torto do nosso provincianismo. E aí me aguardaria o sinal de retorno, sem dúvida desejado, por esse amor, combalido mas fiel, e, sobretudo, provinciano e tecido nas mesmas fibras.

E, de empréstimo, viriam novas pessoas, às quais não me apegaria por sabê-las transeuntes, meras brisas de aluguel onírico. Mas, essa gente teria o poder de vestir o tempo de férias, férias desse esquema invasor e vazio que domina o contato entre as pessoas nessa cidade.

Conversaríamos sobre idéias, desconhecendo o que as pessoas fazem ou têm. Exploraríamos o terreno do imaginário e o mundo das interrogações. Trocaríamos os achados numa corrente de desapego aos direitos autorais. Seríamos dispensados de saber quem é filho de quem, casado com quem, nora de quem, cunhado de quem, avô de quem, neto de quem… assim como de saber quem faz o quê, trabalha em quê, mora aonde, vive de quê, vive como, namora com quem, transa com quem, trai quem com quem, se separou de quem, vai casar com quem… Riríamos das tentativas de alguém se valorizar através da citação de nomes de amigos, tidos como importantes, e o ensinaríamos que a importância está em cada um, pelo que é. Faríamos dos lugares públicos um palco sem platéias, onde todos poderiam encenar a peça do viver e do conviver, sem amarras além do respeito ao outro.

E, como o meu coração estaria guardado, porque ocupado, eu sentiria saudade. Retiraria do limbo a sua gente, com o coração descansado e em condições de enfrentar uma nova jornada. E saberia que Pasárgada é isso: apenas um sonho.

28.12.91

*  PASÁRGADA (PASARGÁDAI em grego) – Cidade da Ásia Anterior, no Planalto do Irã, capital do Império Persa pouco antes de Persépolis, fundada mais ou menos a 556 A.C. e embelezada por Ciro, O Grande. Ruínas em Murghab a nordeste de Chírãv.

NOTA ATUAL:

Se não vou negar hoje, mais de vinte anos depois, que senti e escrevi isso, provavelmente em um dia em que estava meio de mal com a vida na cidade, venho complementar, dizendo algo que carrego comigo: as generalizações são sempre inadequadas, principalmente se tomadas ao pé da letra quando foram usadas como força de expressão… Hoje eu não tenho mais ideia de como é a gente da minha cidade. Hoje eu não sei nem se tenho mais cidade… Repostar aqui, numa categoria diferente da original como era em Páginas, faz parte de uma rearrumação de casa interior iniciada em 2022 e que contou com diversos outros fatores existenciais para tanto.

Data da postagem: 30.04.2023

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