Rigor & Rigidez

04/04/2024

175

Como preâmbulo para estar desenterrando algo escrito há tanto tempo e postado sob número 23, esclareço que estava assistindo à aula magna comemorativa dos 10 anos do Instituto Santos Dumont, com seu criador Miguel Nicolelis, quando ele falou sobre rigidez e me transportou ao passado.

Considero valioso tudo o que emergiu do seu trabalho e que hoje se comemora. Assim, trago o link no YouTube para todos: https://www.youtube.com/live/N7ZGwr0BND4?si=w3B8DOOMkwsB_p9J

E, dando a César o que é de César, mais vale assistir ao vídeo do que ler o que segue abaixo, sem destrato para o que escrevo, senão não postaria e muito menos reapresentaria sob número 175.

Defendi muitas vezes que eu sou rigorosa, mas não rígida. E explicava sempre: ser rigoroso é tratar as coisas ordinárias como ordinárias e as extraordinárias como extraordinárias, enquanto ser rígido é tratar tanto as coisas ordinárias quanto as extraordinárias como ordinárias. E, como eu realmente distingo umas das outras e trato-as diferentemente, sempre me vi como rigorosa, mas não rígida.

No entanto, sei que não é bem assim que me vêem. E penso que preciso articular  outro elemento ao que digo para tornar mais claro o meu ponto de vista sobre a questão que muitos confundem, ao meu ver.

Lá vou eu de novo mergulhar no nosso passado colonial com a herança nefasta do patrimonialismo português de então. É que nós tendemos sempre a dividir o mundo entre “eu” e “eles” quando estamos a falar de comportamentos impróprios: “eles” agem erradamente. Mas, quando chega a nossa vez… tudo muda de figura! O mesmo comportamento que eu avaliei nos outros como inadequado, errado, indesejável, etc., passa a contar com minha condescendência e total justificativa quando é meu. De certa forma, poderíamos extrair daí a tendência também de delegarmos aos outros – “eles” – as experiências ordinárias e a nós mesmos – “eu” – as experiências “extraordinárias”, ainda quando não o são.

Foi bem assim que aconteceu comigo e uma amiga quando fomos uma vez a Recife para eu comprar uns móveis. Íamos de ônibus e, ao chegar à rodoviária, notei que não tinha levado nenhum documento meu, esquecera tudo em casa. Só estava com a carteira de dinheiro e o cartão Visa. Ainda tentei voltar de táxi para apanhar, quando vi que não daria tempo. Aí pedi ao motorista que me levasse de volta, pois pelo celular minha amiga tinha me dito que havia falado com o funcionário e eu poderia entrar no ônibus. Não havia uma certeza, mas valia a pena arriscar, já que perderia o ônibus de qualquer jeito. Fui e, de fato, consegui viajar. Mas, trago isso aqui porque tem relação com a questão da diferença entre situação ordinária e extraordinária.

Minha amiga, solidária comigo e tentando me ajudar a resolver a questão, argumentou que, evidentemente, o funcionário me deixaria subir ao ônibus, pois tinha sido um fato extraordinário eu ter esquecido meus documentos. Ela estava me defendendo valorosamente e, mesmo assim, eu tive de lhe responder que não via assim, que eu estava numa situação absolutamente ordinária em que não tinha nenhuma razão excepcional para me livrar das conseqüências da minha distração. Se eu conseguisse viajar, ótimo, se não conseguisse, não teria do que reclamar.

Agora volto à comparação entre rigor e rigidez.

Ser rigorosa para mim só faz sentido se isso se aplicar inclusive à minha pessoa. Mas, sei que isso não faz de mim uma pessoa que não comete transgressões, em absoluto (penso que esse é um aspecto que não fica muito evidente para as pessoas). Fui e voltei de Recife sem um documento que dissesse se eu tinha 15 ou 80 anos, comprei passagem de volta e paguei os móveis com cartão Visa (este tinha escapado da minha leseira) sem um RG em mãos, tudo isso porque no Brasil temos facilidade para infringir as regras e as normas. Fiquei grata à minha amiga por todo o apoio que me deu e por ter tentado me confortar pelo transtorno causado pela minha desatenção. Entretanto, sendo rigorosa, eu teria de me avaliar imparcialmente. Se eu fosse barrada, não era o funcionário que estaria errado, e sim, eu.

O rigor não tem a pretensão de impedir o erro em pessoas rigorosas, apenas as faz ver o erro como erro.

Já Rigidez… fica para outra vez.

Data da postagem: 24.03.24

Data original: 03.03.2012

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No mundo dos excessos

24/03/2024

174

De certa forma, o processo natural da vida conta com uma sabedoria própria. A gente vai estranhando as mudanças, que acarretam o que para nós representa perdas de qualidade, e se sente menos pesarosa de ir abandonando o barco da vida aos poucos. 

E se isso sempre foi, em certo sentido, batizado de choque de gerações, há cada vez maior celeridade no estranhamento por parte dos mais velhos, dada a velocidade das mudanças em todos os campos da vida humana. 

Vivemos num mundo em que há excesso em todos os seus elementos. Da produção de objetos ao alucinante avanço da IA, da oferta ilimitada de lazer programado às inumeráveis mensagens nas redes sociais sobre tudo e todos, viver inclui, atualmente, uma excessiva dose de escolhas que nos põe frente aos conflitos – com seus efeitos sofridos da perda do não escolhido – teorizados por Kurt Lewin: aproximação & aproximação: aproximação & esquiva; esquiva & esquiva.

Se escolher hoje nos impõe, muitas vezes, uma alta dose de cansaço por esse excesso de elementos ofertados, no que se inclui a grande variedade do quêondequantopor quê, etc. que está em jogo para qualquer área de escolha a ser feita, temos, ao mesmo tempo, a revitalização da oferta e do consumo pelo processo de avaliação requerida para absolutamente tudo o que se faz hoje em dia. 

E aqui eu passo a dizer, especificamente, de mim na questão: vi-me explicando ao garçom que solicitou uma avaliação do serviço, sorrindo e tentando ser delicada – e, graças a Deus, contando com um sorriso compreensivo de volta – que eu tinha sido professora e passado muito tempo da minha vida avaliando os alunos, e que estava exausta de agora ter que avaliar tudo, a todo momento em que me mexo nesse mundo atual. Compras, serviços, tudo solicita avaliação pela internet de alguma forma e até presencialmente como era o caso ali. Emails, whatsapp e assim vai… Se formos atender à demanda, usaremos excessivamente o nosso precioso tempo – o mais valioso patrimônio – para que esse excesso de oferta tenha o escoamento desejado. Não apenas os produtores receberão o feedback, mas, e talvez até seja o maior objetivo, os consumidores serão guiados indiretamente para aumentarem seu consumo. 

E não é que não considere avaliações construtivas muito úteis, assim como sempre defendi a avaliação do conhecimento na relação ensino/aprendizagem, por mais sujeita à imperfeição que esteja.

Se havia algo na área do meu trabalho de professora que eu não gostava de fazer, era avaliar. E, no entanto, por reconhecer sua importância e valor, investi com dedicação e esforço muitas e muitas horas de trabalho nessa tarefa, mais delicada ainda quando se trabalha na área das ciências humanas. Finais de semana corrigindo provas e trabalhos, horários noturnos nessa atividade consumiram muito do meu tempo, invadindo inclusive o de vida pessoal.

Também reconheço o peso positivo de uma avaliação, seja para um serviço prestado, seja para um objeto adquirido. No entanto, acredito que nossa sociedade de consumo desvirtuou o processo. Não é o aprimoramento de qualidade que está, em si mesmo, como meta. Além do uso indevido do tempo de vida das pessoas pelo excesso de solicitações de avaliação do que foi consumido, tudo tem por objetivo final o consumo de um produto, alimentado de forma sutil por todos esses mecanismos de apropriação do tempo de vida do ser humano, assim desumanizado. 

Data da postagem: 24.03.24

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O toque na alma

24/02/2024

173

Tudo parece se sustentar no pingo dágua que ainda não atingiu o solo.

Talvez venha daí o fascínio pela solidez das fotos, pois o tempo fica preso na divisão infinita do segundo que valeu um registro.

Há beleza ainda quando se reconhece que o movimento – o ser não elimina o estar que o transforma, indefinidamente, até seu ponto final – virá a ser cerceado por um limite, o do solo que o abrigará.

O vazio da alma emerge do vazio do outro em sua vida, no ser e estar só ao longo de toda uma existência com o verbo.

Mas, há algo além da nossa compreensão. Eis que surge uma flor no caminho do pingo d´água. De forma inusual, trazida pela apreensão do meu eu sem palavras, no espaço da comunicação afetiva, intuitiva, incomum, à distância.

O inesperado me fez, sozinha mesmo, sorrir!

Data da postagem: 24.02.24

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Paperterapia 2

03/01/2024

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Engasgo da alma

Ao sentir falta de escrever, sem conseguir que as palavras – fiéis amigas e companheiras – me estendessem a corda para eu sair da imersão onde minha alma havia se engasgado, fui sufocando até o limite suportável da relação vida/morte e isso clareou a possibilidade de retorno à escritura e ao parto a fórceps: minhas palavras podem não ir para o âmbito do eu-público, podem ficar no eu-privado e isso me deu a liberdade de aqui estar.

Trouxe esse primeiro parágrafo da verdadeira Paperterapia 2 (guardada comigo) para reafirmar o valor do encontro da alma com suas próprias palavras, aquelas que refazem o contato com a vida ao fazerem emergir as partes de um eu que contradizem o vazio, falsamente sentido como existente pelo domínio do silêncio para si mesma.

O binômio Público/Privado mais uma vez se impõe em minha vida. Seus termos são, cada um, condição de existência do outro, ora muito imbricados, ora bem distanciados. A separação nunca será total. As partes do meu eu que se abrigam no refúgio do privado só existem por haver um eu público constituído na relação com o mundo.

Assim, Imparidade/Paridade esteve na origem deste blog. No passo a passo seguido para a sua construção, fui esclarecendo para mim mesma o Quem, O Quê, Para Quê, Para Quem, Por Quê e retomo aqui o https://imparidade.wordpress.com/o-que/ onde o movimento pendular do minha condição humana foi destacado no último parágrafo.

Ainda que escrever seja sempre uma paperterapia, haverá escrituras destinadas e outras não destinadas ao Imparidade. A consciência revivida dessa distinção promoverá a liberdade para as palavras.

Data da postagem: 03.01.2024

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Ô abram alas, que eu quero passar…

01/05/2023

171

Com o acolhimento simpático de CARMEN VASCONCELOS, o artigo foi assim publicado na Tribuna do Norte, em sua coluna:

http://www.tribunadonorte.com.br/coluna.php?id=2004&art=194732

Exercício de cidadania

04 de Setembro de 2011

Li um texto da professora Denise Dantas, falando de assuntos que sempre acho importante ressaltar: cidadania e respeito ao outro.

Por isso, compartilho-o com vocês:

Ô ABRAM ALAS, QUE EU QUERO PASSAR…
Denise Dantas (profa. aposentada da UFRN)

Sei que não estamos no carnaval. Ou melhor, já nem sei se estamos ou não. Com a invenção dos carnavais fora de época, é bem possível que haja folias e foliões em plena ebulição em algum lugar desse grande país do carnaval.

Também não vai importar muito se é festa popular ou não, porque esse refrão aí retrata muito a alma brasileira, infelizmente, que nem sempre pede caminho para a boa e verdadeira folia. Não foi à toa que ele surgiu agora na minha lembrança.

Mais particularmente, essa parece ser a voz interna de comando dos motoristas dessas portentosas máquinas quase voadoras, que hoje em dia se incluem naquelas chamadas geralmente camionetes 4 x 4. Perdoem-me os aficionados por carros, tenho de confessar que sou ignorante nessa área e mal distingo o meu carro dos da minha família. Contudo, acredito que dê para vocês reconhecerem o que estou a falar.

Aos 63 anos, muitas e muitas vezes não consigo estacionar nas vagas para idosos nos shoppings de Natal, porque são elas as prediletas dos motoristas dessas imensas camionetes. Muito me custa acreditar que esses sejam os veículos da preferência dos mais maduros, mais chegados à facilidade dos carros menores em termos de manobra, item muito mais desejável para sua idade do que o que oferece uma grande e possante máquina dirigível. Eu até gostaria de tirar a limpo essa questão da preferência dos idosos… O fato é que as vagas são, sistematicamente, ocupadas por grandes 4 x 4. Os idosos teriam o direito de entoar “Ô abram alas, que eu quero (e tenho direito) passar”, mas não seriam ouvidos, muito provavelmente.

O mais perverso desse hino tão brasileiro, é que ele é entoado também na forma como Roberto DaMatta se refere ao comportamento prepotente de dono do mundo tão em vigor no nosso país : sem respeito pelo direito dos outros, muitos condutores de camionetes 4 x 4 privatizam as vias públicas, situando-se acima das leis de trânsito e, literalmente, expulsando os demais veículos de suas faixas, sob pena de sofrerem avarias por batidas, absolutamente evitáveis, se eles fossem respeitados sem sair da localização em que poderiam continuar.

Como teimo em não ceder o meu direito, fui vitima de uma ocorrência desse tipo e estou amargando a dor de ter tido um carro batizado após uma semana de retirada da concessionária. Espero que isso não venha a suceder com você, mas espero, também, que você não ceda à pressão do “Ô abram alas, que eu quero passar” sobre o seu direito. Continuemos na defesa de uma mais civilizada convivência entre nós. Sejamos nós a entoar esse refrão para que o respeito pelo direito do outro tenha passagem:

Ô abram alas, que eu quero passar…

Data da postagem: 01.05.2023

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Criando minha Pasárgada*

30/04/2023

170

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Seria na mesma curva azul, de céu cintilante e cama forrada com o branco das areias. Seria com a mesma temperatura, aquela mesma que às vezes parece se tornar mel escaldante, mas que na maior parte do tempo é subjugada pelo vento, sempre tão livre. Seria com o mesmo cordão verde ao dia, negro à noite, linha de base nas noites de lua. Seria com o mesmo mar, banho de paz em todos os momentos… Natal mesma, ímã telúrico, chaves naturais do estar no mundo.

Sua gente, no entanto, seria transladada para o limbo, e aí ficaria a me criar uma trégua do cansaço de suas pequenezas involuntárias, filhas da terra também, crias do lado torto do nosso provincianismo. E aí me aguardaria o sinal de retorno, sem dúvida desejado, por esse amor, combalido mas fiel, e, sobretudo, provinciano e tecido nas mesmas fibras.

E, de empréstimo, viriam novas pessoas, às quais não me apegaria por sabê-las transeuntes, meras brisas de aluguel onírico. Mas, essa gente teria o poder de vestir o tempo de férias, férias desse esquema invasor e vazio que domina o contato entre as pessoas nessa cidade.

Conversaríamos sobre idéias, desconhecendo o que as pessoas fazem ou têm. Exploraríamos o terreno do imaginário e o mundo das interrogações. Trocaríamos os achados numa corrente de desapego aos direitos autorais. Seríamos dispensados de saber quem é filho de quem, casado com quem, nora de quem, cunhado de quem, avô de quem, neto de quem… assim como de saber quem faz o quê, trabalha em quê, mora aonde, vive de quê, vive como, namora com quem, transa com quem, trai quem com quem, se separou de quem, vai casar com quem… Riríamos das tentativas de alguém se valorizar através da citação de nomes de amigos, tidos como importantes, e o ensinaríamos que a importância está em cada um, pelo que é. Faríamos dos lugares públicos um palco sem platéias, onde todos poderiam encenar a peça do viver e do conviver, sem amarras além do respeito ao outro.

E, como o meu coração estaria guardado, porque ocupado, eu sentiria saudade. Retiraria do limbo a sua gente, com o coração descansado e em condições de enfrentar uma nova jornada. E saberia que Pasárgada é isso: apenas um sonho.

28.12.91

*  PASÁRGADA (PASARGÁDAI em grego) – Cidade da Ásia Anterior, no Planalto do Irã, capital do Império Persa pouco antes de Persépolis, fundada mais ou menos a 556 A.C. e embelezada por Ciro, O Grande. Ruínas em Murghab a nordeste de Chírãv.

NOTA ATUAL:

Se não vou negar hoje, mais de vinte anos depois, que senti e escrevi isso, provavelmente em um dia em que estava meio de mal com a vida na cidade, venho complementar, dizendo algo que carrego comigo: as generalizações são sempre inadequadas, principalmente se tomadas ao pé da letra quando foram usadas como força de expressão… Hoje eu não tenho mais ideia de como é a gente da minha cidade. Hoje eu não sei nem se tenho mais cidade… Repostar aqui, numa categoria diferente da original como era em Páginas, faz parte de uma rearrumação de casa interior iniciada em 2022 e que contou com diversos outros fatores existenciais para tanto.

Data da postagem: 30.04.2023

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Que venham os ladrões de paisagens!*

27/04/2023

Denise Dantas – Profa.

169

Desde menina, gosto de passear de carro. Sei que pode parecer estranho, mas isso é algo muito prazeroso para mim. Tanto que, recentemente, sentindo muita falta dos meus antigos passeios dominicais pela cidade, quando eu ia no banco do carona e não dirigindo como é a minha rotina atualmente, solicitei ao motorista de um familiar que me levasse a visitar as ruas e avenidas para que as visse, o que não consigo fazer quanto estou na direção do carro. Dessa forma, fizemos o percurso de costura das ruas e avenidas de Petrópolis e Tirol: íamos do começo ao fim, por exemplo, da Rua Seridó, voltávamos pela Potengi, e assim sucessivamente, passando a linha depois no sentido perpendicular a isto. Nem é preciso comentar a reação dos que souberam do que fiz…

Da visitação como hábito, que incorporava percursos inteiramente novos muitas vezes, restou o gosto de, pelo menos na orla marítima, dirigir me encantando com a beleza de nossa cidade. Se foi poeticamente exagerada e bonita a expressão dada por uma pessoa ao que eu lhe passei ao falar da nossa região, quando recebi a adjetivação de ser teluricamente nordestina, de certa forma ela faz jus ao que sinto, pois amo nossa terra e continuo a me emocionar ao descobrir a novidade permanente da beleza das nossas paisagens.

E, por isso mesmo, ao constatar que elas estão sumindo da nossa vista, sinto uma dor que não encontro nome para definir, muito embora já tenha encontrado vários tipos de denominações para tal emoção: seca, murcha, insana, calada, mastigada, cortante, vazia, dormente, pisada, moída, picada, guardada, gemida, abafada, cinza, teimosa, sofrida, tangente, nonsense, tristonha,… Não sei ainda, no entanto, falar daquilo que me atinge de um jeito que sei reconhecer como dor, mas não tive ainda como classificar – quem sabe dor impotente?!… – ao perceber a irreversibilidade de certas ações que estão roubando nossas paisagens. Em um dia, vejo que foi um pedacinho da vista do Farol de Mãe Luíza que sumiu, noutro, do Morro do Careca, noutro, do verde das árvores nas avenidas, noutro, da linha de dunas que circunda nossa cidade… Edifícios com gabaritos insustentáveis para uma cidade do porte da nossa, construções em áreas que deveriam continuar sendo não edificáveis e, assim, sinto que, a cada minuto, um pedacinho de paisagem é roubada de mim. E me inquieto e me horrorizo com a indiferença dos de hoje para com seus descendentes a herdarem, inocentemente, uma cidade vítima dos ladrões de paisagem.

E, no entanto, ao encontrar uma outra paisagem, não natural – a praia que tinha areias brancas, cheiro de mar, sons de ondas e natureza íntegra transformou-se numa área fétida com uma visão de sujeira acalentada pela poluição sonora de forrós gritados nos nossos ouvidos – construída por homens também indiferentes ao legado para outras gerações além da presente, fiquei a pensar se não seria até bom que os ladrões de paisagem agissem de forma mais eficiente e roubassem de vez algumas paisagens dos nossos olhos… Que algo fosse feito para que eu não visse mais a Ponta-Negra da minha infância, dos tempos em que existia uma Baixa-da-Coruja e um Carrasco (que me corrijam os veranistas desse tempo, pois minha memória não é lá essas coisas), a Ponta-Negra ausente da minha adolescência, passada fora daqui, mas viva na lembrança como um sonho nunca perdido, a Ponta-Negra da minha maturidade, quando se fez bairro e estendeu sua beleza ao alcance de muitos mais… Que eu não a visse mais e não sentisse a dor – agora sei, impotente – de assistir a uma paisagem querida ser deteriorada e ultrajada pelas mãos dos que se servem dela. É desalento, é entrega, sei disso. Mas, que venham os ladrões de paisagem. Sejam “bem-vindos”!

* Artigo publicado em o O Poti, em 14 de março de 2004, Caderno Cidades, p.5.

Data da postagem: 27.04.2023

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Do fazer hora ao fazer a hora*

18/04/2023

Denise Dantas – Profa. UFRN

168

A noite chega ao raiar do sol… Fecham-se as portas, fecham-se os olhos, deitam-se os corpos jovens e cansados da brincadeira noturna. E a manhã se transforma na noite tão anunciada na infância…“Está na hora de dormir, já é de noite.”. E a praia e o mar ficam a esperar que os corpos recuperados pelo descanso acordem para suas luzes, seu calor – sua vida – quando já é findo e perdido o bom-dia matinal das férias…

Retomo inquietações antigas.

Um imenso pesar sempre me acompanhava na observação dos novos costumes da vida social em Natal, à medida que os programas de lazer noturno começaram a ter seu início retardado, algo para mim absolutamente sem sentido para uma cidade em que às dezenove horas a maioria dos seus habitantes de classe média já se encontra em casa, após a jornada de trabalho diária. A contragosto, fui me acomodando aos novos padrões, sem ver neles senão uma adesão a elementos alienígenas cultuados aqui como avançados. Tomar conhecimento de que pessoas faziam hora antes do programa combinado reforçava para mim a existência de um nonsense crescentemente aceito como ‘aquilo que tinha de ser’.

Isso já faz muito tempo e senti-me voto vencido, embora com direito a voz para espernear, nos espaços privados, consciente de que não estava tendo ressonância alguma para a minha queixa e desalento. Por quê iniciar um programa à noite mais cedo, terminar mais cedo e dormir mais cedo teria de ser menos valorizado, nunca me foi explicado de forma convincente, mas era mais uma das minhas contramãos na história e ficou por isso mesmo.

No entanto, vi-me mobilizada, novamente, a tocar no assunto ao ouvir, de vários jovens de hoje reunidos no terraço da praia, comentários que me instigam a falar sobre este tema, ainda que sem maiores expectativas com relação a uma reversão no processo, dado que exigiria uma ação coletiva organizada e empenhada em realizá-la a partir, é claro, da defesa comum de um mesmo ponto de vista.

Estou escrevendo em Pirangi do Norte. Praia animada, bonita, colorida por jovens… a partir do meio-dia! Agitada por shows noturnos que se prolongam por madrugadas. Mas, não é peculiaridade desta praia o que estou comentando. Em outras praias e em Natal, ao longo do ano, o fenômeno é o mesmo.

Embora seja da geração que mudou os ponteiros do relógio com relação a esta questão, eu me identifico com estes jovens que hoje estão a lamentar a perda que sentem de suas manhãs de sol. A perplexidade revelada por alguns deles quanto à razão do início tardio dos shows, etc., a queixa por se sentirem lesados em noites de sono bem dormidas, no conforto do escuro da noite e das temperaturas mais baixas, a comparação feita a outras  sociedades em que o lazer noturno tem limites mais sensatos (vale a pena ver Temperança por Comte-Sponville…) são indícios de que não há um acatamento tão unânime sobre a questão quanto me parecia. Há, em alguns jovens (e quem saberia precisar quantos?), a expressão do desejo de programas iniciados mais cedo para melhor usufruto de outros aspectos da vida.

Será que teremos que nos render a valores e costumes que têm sentido em seus lugares de origem, mas que não dizem de nossa realidade local? Penso que não. Sem oposição a outras formas de viver, sou defensora de preservamos nossas características locais por configurarem nossa identidade cultural. Acredito ainda que, se temos funcionado como pólo de atração para muitos que aqui têm vindo se fixar, isto acontece exatamente por esta feição local que, infelizmente, vem sendo, irrefletida e inconseqüentemente, desfigurada (e não apenas nisso, vale destacar…)

Por que não poderíamos ter a vida noturna tendo início duas horas antes do que está em vigor, se existe uma espécie de intervalo em que se faz hora para que chegue a hora de sair?!…

… Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

Lembrar esse hino me leva a perceber que ainda tenho alguma esperança de ver os jovens reavendo suas manhãs de sol, de vê-los fazendo a hora do seu lazer.

* Artigo publicado na Tribuna do Norte, em 21 de janeiro de 2004,  p.2.

Data da postagem: 18.04.2023

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Só morro com hora marcada!*

16/04/2023

Denise Dantas

167

Resolvi fincar o pé! Com honrosas exceções, como diz-se ser próprio de toda regra, vou escolher meus médicos, daqui para frente, por critérios que não estarão restritos à sua competência. Este, um critério realmente fundamental, é claro. Mas, não será o único. E espero que falar sobre isto não feche as portas do reino dos jalecos brancos para mim. Antes, abra as da sua compreensão para a causa aqui defendida…

Vocês já aprenderam a técnica de contar carneirinhos? Não? Pouco brasileira, não é? Então, vamos lá, para uma forma bem brasileira – precisamente, bem nordestina – de ver o tempo passar sem senti-lo como uma carga de chumbo a derreter nossa resistência: puxe conversa com seu vizinho ao lado, aquele que está como você, sentado numa sala de espera de um consultório médico, a esperar que chegue a vez de ser atendido, e viva o espantoso fenômeno de intimidade com um estranho, a partilharem os detalhes das doenças ou mal-estares que os fizeram estar ali e muitos assuntos mais.

Sim! É importante ressaltar que vocês ali não têm hora marcada para serem atendidos pelo doutor. Evidentemente, se assim fosse e alguém faltasse à consulta, o médico iria ter que esperar looonnnngos quinze minutos até o próximo paciente. Apesar da freqüência diminuta de tal ocorrência, é perfeitamente possível apreender e concordar quanto ao possível desrespeito contido naquele simples esquecimento do paciente que quase sempre poderia ter ligado, avisando com antecedência sua impossibilidade de ida à consulta. Mas, não é muito de nossos hábitos isto de pesar as conseqüências dos nossos atrasos ou furos em termos de compromissos agendados com outros, não é? E o médico, vítima potencial de tal desconsideração, tem que se proteger, é claro!

E eis que surge a grande invenção! Natalense? Nordestina? Não sei. Mas, é fácil imaginar que não seja usada lá pelo sudeste maravilha (digo isto sem nenhum descaso para com nossa terra, pois sou nordestinamente telúrica, no dizer de uma pessoa amiga). Surge a divina invenção do atendimento médico por ordem de chegada!!!

Quem não conhece o sistema, não é? Todos passamos por ele, vez por outra, principalmente quando a curva dos anos já nos fez derrapar ‘algumas várias’ vezes… Esqueci de excluir uma pequena parcela de pacientes: claro que os próprios médicos jamais percorrerão os corredores kafkanianos de uma sala de espera de consultório médico. Até atribuo a isto a ausência de empatia para a questão dos seus pacientes ali, a tornarem-se impacientes pacientes, e penso que, se eles vivenciassem tais experiências, dar-se-iam conta do que ocorre naquele espaço que congrega pessoas desconhecidas, em sofrimento físico de alguma ordem.

Por ordem de chegada significa ficar impossibilitado de desenvolver suas atividades normais de trabalho por um tempo que excede, em muito, os quinze, vinte minutos de consulta médica (às vezes, toda uma manhã ou uma tarde – ou ainda, um longo período que invade a hora do almoço – são consumidos para uma única ida ao médico), e ter com isto uma série de dificuldades no seu trabalho pelo atraso desmedido de suas atividades. Pode significar você ficar sabendo de toda a doença do seu vizinho de cadeira, de seus problemas familiares e de como seu gato machucou a patinha numa presilha mecânica. Pode significar um acréscimo de desconforto físico ao que já sente por força do motivo que o levou ali. Pode significar, e significa, que seu maior patrimônio, o seu tempo de vida, está sendo dilapidado de uma forma injustamente danosa.

Há um agravo: inversamente, há a invenção da marcação de horário de consulta em hora marcada e em dia marcado. Ou seja, se você quer ir ao médico tem que ligar na véspera, na hora X e ficar dependurado no telefone, que inevitavelmente sofrerá congestionamento de telefonemas, até conseguir – ou, o que é mais provável, desistir – falar com a atendente para marcar a consulta. Mas, há uma opção menos sacrificante: contrate uma secretária particular e ela fará suas ligações sem você ter que se concentrar nisto, desconcentrando-se de suas atividades a cada cinco minutos para tentar uma nova ligação. Simples, não é?

Por todos estes motivos, decidi optar definitivamente pela atendente sem hora marcada e médico com hora marcada. Pelo tempo já vivido em salas de espera de consultórios médicos e, sabendo que, por força do tempo a passar, vou precisar sempre mais e mais, resolvi escolher novos médicos entre aqueles que marcam hora de consulta e cujas atendentes não marcam hora de marcação de consulta. De tal forma isto adquiriu um tom vitalmente dramático para mim que, até para morrer, se precisar de médico ao meu lado, só morro com hora marcada!

* Artigo publicado na Tribuna do Norte, em 07 de agosto de 2001, p.2.

Data da postagem: 16.04.2023

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Viver, simplesmente… em qualquer idade*

15/04/2023

166

Denise Dantas – Profa. UFRN

Há muito tempo atrás, ganhei de uma amiga um livro sobre uma comunidade primitiva nas ilhas polinésias. Mais precisamente sobre as reflexões do seu líder a respeito do homem branco. Tendo sido construída uma amizade entre ele e o estudioso europeu que procurava compreender a visão de mundo do seu povo, visitaram a Europa e, ao voltar, ele traduziu em palavras seu sentimento de admiração e perplexidade pelo que tinha observado.

Como leitora, tive o meu momento de surpresa ao me deparar com uma forma simples e, ao mesmo tempo, extremamente rica de se viver e pensar a vida. Principalmente, porque havia aspectos realmente inusitados para mim, como é o caso de sua análise sobre a forma como nós ocidentais, representados pela comunidade visitada por ele, lidamos com o tempo. Seguindo sua exposição, dei-me conta de coisas obviamente simples que, no entanto, nunca haviam sido pensadas antes por mim. Nós dividimos o tempo em pedacinhos e vivemos obcecados em acompanhar a sua marcação. Nós criamos o relógio e, com isso, registramos o já vivido. Ficamos, assim, mais ligados à lembrança do que está perdido. E, principalmente, tornamo-nos cônscios de um porvir cada vez mais reduzido. Contar os anos de vida, para ele, era uma forma perigosa de se saber quantas luas dura a vida das pessoas em geral e, com isso, tomar consciência da proximidade da morte. E, com isso, de certa forma, morrer.

Sem me dar conta, ao pensar em escrever sobre a saúde na terceira idade, veio-me à lembrança essa leitura. Eu penso na terceira idade como mais um momento no percurso do desenvolvimento da pessoa, como parte de uma curva de vida. Se reconhecer as etapas do trajeto da pessoa em sua própria história traz, inevitavelmente, o uso das fases marcantes do seu desenvolvimento – infância, juventude, maturidade e velhice – é de fundamental importância que não estejamos aprisionados na valorização do que já se foi, do tempo vencido e registrado do que já passou. E, principalmente, é necessário que não pensemos na terceira idade como um período dissociado dos demais. A criança, o jovem, o adulto, o idoso e o velho não são pessoas diferentes entre si, são uma mesma pessoa que vive o magnífico fenômeno da permanência no fugaz, como disse Borges. Somos iguais e diferentes de nós mesmos a cada instante.

Assim, os idosos podem sentir-se tão vivos quanto se sentiam quando eram jovens ou na meia-idade. Ou até sentirem-se tão vivos como nunca se sentiram quando jovens. Não é característico de uma única fase da vida este sentimento que carrega o sentido de saúde do ponto de vista psíquico. Não existe ‘saúde na terceira idade’ quando falamos do ponto de vista do desenvolvimento emocional de alguém, dado que a saúde se configuraria em relação a outros fatores e não seria a etapa de vida que definiria a sua ocorrência ou não.

Mas, sem dúvida, há aspectos específicos da vida dos idosos que requerem uma atenção especial. De certa forma, reconhecemos que o mundo do idoso se torna menor com a idade. Ele circula menos, contata menos pessoas e desenvolve menos atividades por força mesmo dos limites físicos que vão surgindo. E se isso passa a acontecer de uma forma muito acentuada, é possível que leve o idoso a não portar o sentimento de estar vivo. Porque este sentimento, em todos nós, nasce em um mundo de relações, brota da existência, ou seja, ele precisa da relação eu-tu. Ao me ver no olhar do outro que me vê, existo. E vivo. Isto é a base do exercício da criatividade – a pessoa na posição ativa de sujeito – que é outra forma de se compreender a saúde psíquica.

Atividades que proporcionem a oportunidade de expressão, de efusão no mundo, podem criar o solo propício para que o idoso encontre na pluralidade o valor de sua existência individual: o contar estórias, o cantar e muitas outras atividades oferecem tais condições. Ouvir o outro de maneira a fazê-lo sentir-se existindo, atuar na função especular humana significa concorrer para que, ao SER, o outro possa explorar ludicamente sua capacidade de FAZER. E, assim, assegure uma saúde que se confirma no seu sentimento de estar vivo.

* Denise Dantas, Profa. de Psicologia/UFRN, faz Acompanhamento Vivencial no Espaço Solidário

13.12.2003

(texto elaborado a pedido de um jornal da comunidade)

Data da postagem: 15.04.2023

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Um email para o Céu…

14/04/2023

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Estou atrasada com o nosso correio, [Pe.] Sabino. Mas, não seria você alguém a condenar uma pessoa por seus atrasos, não é? A gente chegava a você e, do jeito que chegasse, havia sempre um coração aberto a nos esperar. Aberto às nossas falhas, aberto aos nossos erros, aberto aos nossos acertos, aberto às nossas alegrias, às nossas lutas, às nossas interrogações, aberto amorosamente ao ser humano em sua humanidade transida de imperfeições e perfeições… o divino e o demoníaco no humano não afastavam você de ninguém.

Mas, não posso mais adiar, pois há muito tempo escuto no meu pensamento “Um email para o Céu”…, “Um email para o Céu”…, “Um email para o Céu”… e sei que enquanto não enviar esta mensagem ela estará querendo romper a membrana que a isola dentro de mim.

Embora desta vez eu tenha de enviar um email, pois a telefonia cósmica não registrará o som das minhas palavras e eu quero que elas fiquem guardadas por não serem somente minhas, mas também suas, estou sentindo falta do telefone para desejar um Feliz Natal e ouvir você do outro lado da linha.

Em todos os Natais, desde que o conheci, havia o carinho de sua amizade. Saíamos com nossa amiga Dilma para a confraternização natalina desse micro-grupo que se identificava nas buscas de compreensão winnicottiana do ser complexo que é o homem e também em outros aspectos da visão de mundo. E sempre nos falávamos ao telefone no dia mesmo das comemorações que, para você, tinham o sentido espiritual-religioso e, para mim, mais o sentido espiritual-afetivo. Havia o Sabino amigo no Sabino padre.

Eu me lembro de sua primeira afirmação sobre o amor, tema da minha tese, quando o procurei através da intermediação de outra amiga, para que me ajudasse com alguns aspectos filosóficos do meu trabalho. Até lhe disse depois que quase não o tinha mais procurado, pois você falou bem incisivamente que todo amor termina em Deus e eu pensei se você teria como me ajudar, pois não era sobre esse tipo de amor que eu escrevia.

Mas, no tempo da construção de nossa amizade ficou muito claro o que tinha tentado dizer, pois você era amor na prática de sua vida. E isso integrava a sua fé.

Um amor que se espraiava, para além da religião, no solo da política, da filosofia, da ação social. Um amor que não o fazia magnânimo, por estar fundado na simetria da relação de igualdade tão preciosamente defendida por você para todos nós. Um amor que não o levava a ser protetor, mas que o fazia favorecer que as pessoas aprendessem a se defender das injustiças na vida, viessem de onde viessem. Um amor que insuflava forças ao seu corpo cansado e o levantava da cama a altas horas da noite quando algum dos idosos que estavam sob seus cuidados precisava de você, e um amor que o prendia aos corredores dos hospitais, a fazer companhia para aqueles que tinham o Espaço Solidário por casa. Um amor que o levava a acolher crianças falando e brincando durante suas missas, pois era a forma de suas famílias poderem estar na igreja. Um amor que o fazia rir das falas “sem sentido” de uma Chiquinha, que já vagava na demência senil sem perder o lugar de respeito a que todo ser humano tem direito na vida. Um amor que conseguia o mistério da multiplicação dos pães que só o amor realiza: expandir-se ao se dar.

[Pe.] Sabino, sinto muita falta de sua presença e percebo, paradoxalmente (lembra que Winnicott trabalhou essencialmente a partir de paradoxos?), que não há ausência daqueles que marcam nossas vidas.

21.12.06

Denise Dantas

Data da postagem: 14.04.2023

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O som de Deus

12/04/2023

164


Vou tentar calar a sua preocupação, vou tentar sossegar-lhe o espírito sobre o destino do meu:

É verdade que a palavra de Deus não pousou na minha vida como sucedeu a tanta gente. Ela, que apazigua tantas almas, que conforta tantos homens, passou ao largo da minha existência que, no entanto, não se debate no infortúnio de quem se sente não escolhido, mas, simplesmente, convive pacificamente com as incógnitas da vida.

Na verdade, acredito que na resolução dessa convivência, diferimos, não só eu e você, mas os homens ao longo de sua estada na Terra. E assim, vemos uma diversidade de religiões no tempo e no espaço, a meu ver, todas dignas de respeito.

E a palavra de Deus aí se encontra, mudando forma e conteúdo como mudaram os mares e os vales na lenta evolução geofísica do planeta. A palavra para mim – e aqui preciso ser entendida como não estando a desrespeitar uma outra visão das coisas – surge com o homem, a falar sobre uma realidade que o transcende e, por isso mesmo, inalcançável. A razão da palavra pode ser divina, mas a palavra é humana, e com sua fala o homem é um intérprete e não o reprodutor de uma mensagem cuja autoria não se reporta a outras dimensões.

Mas, se não me chegou a palavra de Deus, chegou-me o seu som. Ele está presente nas diversas expressões de vida que temos: na visão de uma palmeira contra o azul límpido do céu, na cascata da risada de uma criança, numa pintura que nos estica a fibra da emoção, na solidariedade em situações de risco de vida, no prazer de dois corpos que se encontram, na penetração vívida de uma música no nosso ser, na novidade eterna das ondas do mar, na satisfação da criação, enfim, no indecifrável fenômeno da vida.

O som de Deus é audível e eu o escuto na música do universo, sem que o encerre em palavras.

Denise Dantas

Carta – não enviada – à minha tia

18.09.91

Data da postagem: 12.04.2023

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Nem “Eu” nem “Nós”*

12/04/2023

163

“Sou cidadão brasileiro”

Mas

        “Que país é este?”

Por que, com os escassos e precários bens públicos destinados à satisfação das várias necessidades coletivas  – educação, saúde, etc. –  muitos dos seus usuários adotam, no cotidiano das suas vidas, uma relação depredatória que se reverte contra eles próprios como parte dessa população já tão mal servida?

A interpretação desses comportamentos individuais em termos de processos psicológicos particulares aos indivíduos em questão, além de não ser muito esclarecedora, pode levar a conclusões distorcidas. Pois, não seria intrigante tantos brasileiros apresentarem “idiossincrasias generalizadas”? Além disso, estar-se-ia descurando da importância da construção social da pessoa  – em que se realiza o indivíduo-cidadão –  até mesmo no que se refere à aprendizagem de sentimentos e emoções.

A relação usuário & bem público constitui-se de forma ambígua. Uma maneira de destacar tal ambigüidade poderia ser distinguir o sentido do direito quanto ao uso para atendimento de uma necessidade, do sentido do dever quanto ao zelo pela preservação do que existe para servir à coletividade. Assim, sugerimos que a relação é vivenciada subjetivamente pelo usuário da seguinte forma:

Há uma cisão onde se presumiria uma conjugação: no exercício da cidadania, direitos e deveres são elementos necessariamente conjugados.

Ora, se na relação de direitos face ao bem público é freqüente a distorção tendo por base uma “privatização” do uso, quando se excede os limites que o caráter de coletivo do bem público por si só impõe, e se na relação de deveres é freqüente uma omissão a revelar um possível não reconhecimento do coletivo no qual se estaria inserido, cabe uma indagação:

Seria possível o “Nós” a partir do “Eu” não pensante, mero depositário de uma condição de cidadania débil e não construída social e politicamente no intercurso da sociedade com o Estado? E ainda, seria possível o “Eu” pensante sem que se exercitasse a participação no “Nós“?

Estes dois aspectos  – a existência do sujeito, individual e coletivo, e o sentido de coletivo como imprescindível ao entendimento do público –  não encontrariam respostas à luz de uma psicologia  desconectada de outros domínios do conhecimento, ao se buscar a compreensão do uso depredatório dos bens públicos. Haveria necessidade de que se aliasse às várias esferas do saber  – sociologia, antropologia, história,  política, etc. –  que tentam apreender a realidade social e humana, para que sua contribuição viesse a ser positiva.

A transformação da realidade caminhando pari passu com a transformação das idéias apresenta-se, no Brasil, sob a forma de um movimento inercial preso à herança do seu passado histórico. Outro ritmo requereria uma melodia cantada a muitas vozes, em uníssono:

“O que é de todos é nosso.”

Denise Dantas

*  Artigo publicado no “DN EDUCAÇÃO“, Ano I, Nº 001, Natal/RN, em 11 de agosto de 1992.

Data da postagem: 12.04.2023

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Você é ímpar!

11/04/2023

162

É… Posso até gostar de ouvir isso. Afinal, às vezes esse modo de falar nos dá uma sensação de sermos singularmente interessantes… Mas, é sobre outra maneira de viver a imparidade que quero conversar. A que vem, não da força da singularidade, mas da força da pluralidade no nosso cotidiano.

A primeira vez em que me deparei com uma surpresa não digerida frente à condição singular faz uns cinco anos. Tinha resolvido ir a Recife num fim de semana, num daqueles momentos de ida ao exterior para uma expedição ao interior. Tudo esclarecido sobre o “pacote” oferecido no Quatro Rodas de Olinda, percebo que a agente de viagens está a fazer uma reserva para duas pessoas, sem que nem por um momento eu tivesse feito tal referência. Expliquei que ia sozinha e ela desculpou-se, dizendo que era o comum, isso das pessoas viajarem acompanhadas. Em seguida, logo em seguida, ela manda o rapaz da agência comprar as minhas duas passagens de ônibus… Isso para não falar no pessoal do hotel. E quando falo surpresa, quero apenas me referir ao momento inicial, logo seguido de uma teia sutil de urdiduras para a volta à normalidade.

E este ponto faz-me refletir sobre um ângulo da situação: a avenida pública será de fato utilizada pelos ímpares, pela maioria dos ímpares? O universo da imparidade será tão reduzido como o que se apresenta aos olhos? Ou o campo social do ímpar tende a ser o mundo privado, e privado na dupla acepção do termo  – a intimidade passando a ser as margens do seu solo social por ver-se privado, mesmo que parcialmente, do convívio da avenida na sua condição de singularidade, face à estranheza que reveste a sua incursão pelo domínio do público?

Há importantes distinções a fazer quanto à singularidade respeitante ao seu gênero  – masculino ou feminino, evidentemente. Mas, não são o que importa no momento. Pois que a imparidade oferece vivências semelhantes num espaço que é de confluência dos gêneros no humano. E, no mundo dos pares, o par é a situação de equilíbrio. O par ideal é o par-casal, mas também é aceitável outra base, a da amizade, em algumas circunstâncias. O inaceitável mesmo é a singularidade na imparidade. Por opção, subsunção ou submissão, constitua um par e saia por aí com direito a ingresso no espetáculo da vida. Nele, ou em agregados dele, o ímpar pode até se aninhar. Contudo, como o elétron a mais que ioniza um átomo, estará em equilíbrio instável, prestes a se deslocar para outra órbita. Por isso, cuidado… “Segure-se!”, “Mantenha o equilíbrio!”.

Não sei se me engano, mas tenho a impressão que são muitos os ímpares que não transpassam os seus umbrais nos fins-de-semana, simplesmente por estarem como ímpares. Ia pensando nisso na minha ida a Genipabu e Redinha, reconquista dos chãos da minha vida, quando gosto de oxigenar o espírito com as paisagens. Não tenho dados concretos, apenas conjeturas que podem ser desmanchadas por uma realidade não correspondente. Mas, ainda assim, com a admissão de um universo diminuto de ímpares, continuo a pensar na sua situação com a mesma linha de preocupação.

Confesso não ter nenhum desejo de fazer a apologia da imparidade. Não só a pluralidade é fundamental, mas, em muitos casos, a paridade é que é a essência, sem dúvida. Minhas divagações entram no espaço próprio do singular devido à posição compressora da sociedade sobre uma situação de vida que sofre a asfixia da normalização.

O ímpar, com sua singularidade sem par, voluntária ou involuntária face ao tipo de vivência, tem a possibilidade de viver o seu momento, que pode ser público ou privado.

E de o viver bem.

_ Ah! Esqueci de perguntar se você gostou daquela peça.

_ (…)

_ Qual? aquela que você teve a sorte de comprar o último bilhete.

_ (…)

_ ADOORRRRROOOOOOOOOOUUUUUUUUUU ?

Denise Dantas

06.05.90

Data atual: 11.04.2023

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O NASCER DO BLOG: PROJETO IN GERUNDIO… 26.02.2012

11/04/2023

161

1.1. PROPONDO

Quem – apresentação

Quem sou (Quem era)

Denise Dantas, formação a ziquezaguear da Arquitetura para a Psicologia, para as Ciências Sociais (mestrado) e a Psicologia Clínica (doutorado), tendo sido aconselhada a dizer isso em forma mais sofisticada, ou seja, ‘formação multifacetada’, o que para mim não elimina a visão da dança das escolhas. Acreditando que A Vida é Arte no Gerúndio, aposentei-me na profissão de professora de Psicologia na UFRN para continuar viva no trabalho diário do espírito. Profissão atual: Aluna. Nasci em 1948, adoro informática, mas sofro as injunções de uma geração que ainda usou régua de cálculo para fazer provas nas disciplinas do curso de Arquitetura nos anos 60-70 do século passado. Em minha defesa, digo que já desmontei um PC e montei de volta num curso de Manutenção e Suporte de Computadores, mesmo  que tenha encerrado e esquecido aí tudo o que aprendi. Ainda assim, aprender é sempre um prazer, em si mesmo!

O Quê – objeto

Definir o objeto… eis a grande questão que deveria ser sempre a primeiríssima de todas. Mas, venho fugindo de parar para pensar nisso e acredito que saiba um pouquinho a razão de estar fazendo isso. É que este, ao que parece, irá ser UM BLOG DE UMA NÃO-BLOGUEIRA!

Pois, nada mais distante da linguagem da internet – como lembrou bem uma amiga, essa sim, blogueira para valer – do que a minha fala prolixa e cheia de veredas que deixam o ouvinte, ou leitor, muitas vezes tonto, a pensar que eu não chegarei ao destino esperado.

A minha primeira idéia foi compartilhar o que já escrevi, abrindo espaço para novas escriturações, à medida em que fossem sendo elaboradas pelos fatos da vida. Isso porque eu estaria unindo duas coisas que me dão prazer: escrever e operar o computador. Ao mesmo tempo, pensei que seria difícil contar com um público, na medida em que não sou escritora e iria apenas expressar vivências e/ou reflexões pessoais. No meio do mar infinito de blogs na rede, para um blog conquistar um público precisa contar com caraterísticas que, acredito, não estão presentes no Imparidade.

Daí, mais uma contradição se instalou: me dei conta de que iria COMPARTILHAR NO VAZIO DE PÚBLICO.

Com isso, talvez eu enfim tenha condição de definir O QUÊ virá a se constituir no objeto deste blog: IMPARIDADE. Em todo caso, torço que você apareça, leia e promova a constituição de uma PARIDADE momentânea.

1.2. VISANDO

Para Quê / Para Quem = objetivos

Compartilhar escritos antigos e novas reflexões pessoais na forma de um diário virtual, aberto também às expressões de quem quiser comentá-lo… Imparidade/Paridade… O universo de leitores pode ser apenas imaginário, mas, em princípio, é constituído por todos aqueles que, ao tomarem conhecimento do blog, queiram visitá-lo.

1.3. JUSTIFICANDO

Por Quê = justificativa

Brincar com as palavras no tabuleiro das Palavras Cruzadas foi o jogo que mais me fisgou quando criança. Pensar o tempo todo sobre coisas simples foi sempre minha forma de respirar a vida. Escrever aqui o que penso talvez seja uma busca de me situar no espaço transicional da tensão imparidade/paridade.

Mas, há também o espírito do que diz Drummond (v. parte sublinhada e grifada em negrito) em seu conselho  à filha, reproduzido abaixo:

07 de julho de 1950,

Encantado com a notícia de estarem a caminho duas crônicas. Espiche-as um pouco, daqui por diante, e sairão no “Correio”, onde sinto falta do seu nome. Escreva, minha filha, escreva. Quando estiver entediada, nostálgica, desocupada, neutra, escreva. Escreva mesmo bobagens, palavras soltas, experimente fazer versos, artigos, pensamentos soltos, descreva como exercício o degrau da escada de seu edifício (saiu verso sem querer), escreva sempre, mesmo para não publicar e principalmente para não publicar. Não tenha a preocupação de fazer obras primas, que de há muito eu já perdi, se que algum dia a tive, mas só e simplesmente escrever, se exprimir, desenvolver um movimento interior que encontra em si próprio sua justificação. Isto é muito melhor do que traduzir Proust, distração que não distrai, porque é chata como toda tradução, e acaba nos desculpando muito fracamente perante nós mesmo de não havermos escrito por nossa conta e responsabilidade.

(trecho de uma carta de Drummond à sua filha, Maria Julieta; grifos meus)

Data da postagem original: 26.02.2012

Data atual: 11.04.2023

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